quinta-feira, 10 de abril de 2014

No livro PEQUIM EM COMA (Jian. MA. Pequim em Coma (Beijing in coma. trad. Heloísa Cardoso Mourão). São Paulo: Record, 2009)




RIVADAVIA ROSA

- o autor [Ma Jian, Quingdao/China, 1953-] – nos traz um alentado relato com sutileza e detalhes e (re) afirma o valor de toda e qualquer vida, ao descrever em detalhes momentos da história em que os indivíduos se tornam multidões. Esta obra é uma canção de amor a um país que muitas vezes parece determinado a esmagar os direitos de seus cidadãos. Não é apenas um livro apaixonante, mas um importante manifesto político, que confirma o lugar de Ma Jian como um dos escritores mais importantes da atualidade.

Do relato das atrocidades do regime comunista chinês, alguns trechos:

“- Ele era muito engenhoso. Um dia, três direitistas que trabalhavam na cantina do campo foram mandados ao vilarejo local para buscar uma carga de inhames. Quando voltaram, o Velho Li esperou do lado de fora das fossas e, depois que os homens cagaram, recolheu o excremento, limpou com água e separou os pedaços não digeridos de inhame. Conseguir comer quase um quilo de inhames. Ele sabia que os três homems estavam tão famintos que não resistiriam a comer alguns inhames crus no caminho de volta do vilarejo. Havia três mil prisioneiros no campo. Passamos meio ano comendo rações paupérrimas, mas o Velho Li era o único de nós que ainda conseguia parecer saudável. Ele tinha energia suficiente até para buscar água todas as manhãs para lavar o rosto. (p.20)

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- Bem, como vai meu irmão? – Havia muito que meu pai cortara relações com seu irmão mais velho que vivia em Dezhou, a ancestral vila de nossa família na Província de Shandong. Durante o movimento de reforma no começo dos anos 1950, quando Mao ordenou que a terra fosse redistribuída aos pobres e classificou os proprietários como inimigos do povo, meu avô, que possuía dois terrenos e três vaas, foi rotulado como um “tirano maligno”. Meu tio foi obrigado a enterrá-lo vivo. Se ele se recusasse, também teria sido executado. (p. 21)

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Depois de sua libertação, ele se tornou mais corajoso e começou a escrever sobre suas experiências em maiores detalhes. Uma passagem dizia: “Durante a sessão de ‘expressão de opiniões’ na companhia da ópera daquele dia, alguém mencionou a foto em que apareci trocando aperto de mão como o maestro americano convidado, depois da performance da Sinfonia heroica de Beethoven por nossa orquestra no Salão de Música de Pequim. Ele disse que eu humilhei o povo chinês ao tentar me insinuar para as forças imperialistas americanas. Eu expliquei que, em países estrangeiros, é costume que o principal violinista troque um aperto de mão com o maestro após um concerto, e, além do mais, foi o maestro americano quem se ofereceu para apertar minha mão, e não o contrário. A foto esteve pendurada na principal sala de reuniões por três anos, como um exemplo de uma troca cultural de sucesso entre a China e o Ocidente. Todos na companhia a conheciam. O secretário do Partido na companhia me acusou de erguer o olhar para o maestro como um cão servil. Expliquei que o maestro estava de pé numa bancada, e então não tive escolha a não ser olhar paa cima...” Se alguém fizesse uma pesquisa pelos jornais de 1954, tenho certeza de que encontraria uma impressão da fotografia que mudou a vida de meu pai. (p. 63)

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- Foi uma coisa boa que seu pai tenha sido transferido para Shandong – murmurou o Dr. Song, desviando os olhos. Era como se ele estivesse falando sozinho.

- Por quê?

- Ele poderia acabar devorado, devorado pelos outros.

O Dr. Song falou com tanta tranquilidade que tive dificuldades em compreender exatamente o que ele estava dizendo.

- Eles comeram o Diretor Liu – ele balbuciou. – Quando fomos inspecionar a fazenda no último mês, confiscamos de um camponês que vive nas proximidades dois fígados humanos secos. Ele os guardou durante todos esses anos. Sempre que ficava doente, ele quebrava uma pequena parte e fazia tônicos medicinais com ela. Um dos fígados pertencera ao Diretor Liu. Embora estivesse seco, ainda tinha mais ou menos este tamanho. – O Dr. Song olhou para mim e mostrou o tamanho com as mãos.

- Eles o comeram? – Recordei uma passagem do diário de meu pai que descrevia um ato de canibalismo que ele testemunhou no campo de Gansu: “Três dias depois que Jiang morreu de inanição, Hu e Gao secretamente cortaram a carne da nádega e da coxa de seu cadáver e a assaram numa fogueira.” (pp. 69-70)



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